Do cadeado e da sua morte

Superar, ultrapassar os limites, ser forte, ser mais forte, sorrir, abraçar, amar, amar-se. Estes são os slogans que encontramos ao virar de uma qualquer esquina virtual, no percurso da nossa vida.
É curioso como é fácil banalizar a força interior que cada pessoa possa ter, como se de uma qualquer receita se tratasse. Este é o poder das redes sociais, aquilo que eu chamo o muro das lamentações do século XXI. Um autêntico prêt-a-porter de emoções.
O passar de páginas inteiras com comentários tipo anúncio, do género «se eu não gostar de mim, quem gostará?» ou, «só sabes a força que tens quando mais nada te restar senão ter força». Podia ficar por aqui com um sem número de exemplos semelhantes, mas a redundância não é a minha figura de estilo favorita.
Pergunto-me diversas vezes, o que procuram as pessoas numa rede social? O que as move na decisão de criar uma página pessoal no meio tão inóspito que é a Internet? E digo inóspito porque é minha convicção que o é de facto. A Internet não é o nosso bairro, a nossa escola, a nossa família, os nossos amigos. A Internet é o mundo inteiro, a praça pública da aldeia global, onde todos se podem permitir dizer tudo o que lhes vai na alma, onde todos podem assumir uma qualquer personagem, onde todos podem saber tudo o que cada um quiser mostrar, literalmente, onde todos podem criticar, ser criticados, sem apelo nem agravo, onde espreitam perigos de toda a espécie para os mais incautos. Querem um meio mais inóspito que este? Mas atenção, mea culpa, que eu também faço parte do grupo e gosto!
Voltando à questão, o que as move, o que faz com que exponham a sua vida, por vezes ao mínimo detalhe, num sítio assim?
Lembro-me do tempo sem telemóveis, sem Internet, onde tudo acontecia como e onde tinha de acontecer, sem que o mundo inteiro soubesse. As acções ficavam no seio de quem as praticava.
Nesse tempo corria-se menos, falava-se mais, lia-se mais, escrevia-se mais. E este é o ponto, para mim, fulcral de toda esta conversa. Escrevia-se mais. Escreviam-se cartas, de amor e das outras, escreviam-se postais ilustrados das férias para enviar aos amigos, à família. Também se sentia a solidão, também se escolhia um amigo para desabafar as mágoas, mas, sobretudo, existia uma coisa chamada diário que servia de repositório de emoções, ao mesmo tempo que se descreviam os acontecimentos que as desencadeavam, ou vice-versa.
Eu nunca tive nenhum, embora sempre tivesse esse desejo. Lembro-me de os ver nas montras das papelarias, lindos, maiores ou menores, mas sempre com um cadeado e ficava fascinada. Para mim esse era o grande mistério dos diários: o cadeado! – Porque têm um cadeado, Pai? – Porque ali se escrevem coisas pessoais, coisas que só dizem respeito à pessoa que escreveu e que não se quer que mais ninguém leia.
Naquela altura, a resposta do meu Pai ainda aguçou mais a minha fantasia. Eu tinha de ter um diário. A vida não era fácil e as hipóteses de ter um, daqueles com cadeado, era remota, por isso improvisei. De um caderno escolar novinho em folha, fiz aquele que seria o meu 1º diário. Colori a capa, colei uns bonecos e acrescentei uma fita de ráfia que atava sempre, cuidadosamente, após cada acontecimento que ali descrevia. Era o meu cadeado e eu acreditava que era tão inviolável como os verdadeiros.
Hoje, sabemos, esse mistério fascinante morreu. Acabaram-se os segredos, tão nossos, acabaram-se os cadeados, improvisados ou não.
Mas aquilo que o meu Pai me disse naquela altura «Porque ali se escrevem coisas pessoais, coisas que só dizem respeito à pessoa que escreveu e que não quer que mais ninguém leia.», nunca me saiu da cabeça. Continuo a tentar perceber porque tudo isso acabou. E vou descobrindo, aos poucos.
Sem querer cair em lugares comuns e psicologia de cordel, acabou do mesmo modo em que as crianças deixaram de brincar na rua com os amigos; já não jogam aos «polícias e ladrões» nem ao berlinde, nem ao peão. Deixaram de esperar que as mães os chamassem para ir lanchar, que depois sempre podiam voltar à brincadeira. Passaram a “barricar-se” nos respectivos quartos a jogar consola e a comer as sandes ao mesmo tempo, atabalhoadamente, para não perderem “vidas” nos jogos. Deixaram de brincar com os amigos de sempre, deixaram de socializar, de dar o 1º beijo às escondidas atrás de um arbusto qualquer.
Começaram a crescer à frente do monitor de um computador, deixaram as consolas e começaram a namorar à distância, que o 1º beijo, esse chegaria de uma qualquer maneira bizarra, sem aquela atracção de antes, mas com a mesma curiosidade do proibido, tantas vezes decepcionante.
Assim têm vindo a crescer várias gerações, que hoje são pais e adoptaram precisamente o mesmo estilo de “convívio”. É o progresso, dizem, fazer o quê? Adapta-te ou morre…
E foram-se perdendo valores, como quem não quer a coisa. Perderam-se os amigos reais e ganharam-se milhares de “amigos” virtuais. Agora contam-se os amigos das redes sociais, quantos mais melhor (?) e diz-se à boca cheia que se é amigo do Brad
Pitt ou de uma qualquer outra estrela. E vai-se alimentando assim a auto-estima.
E depois, quando finalmente se desliga o computador, vai-se dormir a pensar em que frase bombástica se há-de iniciar a nova sessão. Ler? Só se for para retirar alguma ideia passível de aprovação no próximo post.
Mas a próxima sessão tem imensos desafios e a adrenalina sobe quando se vão vendo as repercussões que teve o tal post. Afinal não agradou a todos! Agora demos largas à imaginação, ou falta dela, para defender a camisola. E vêm os “gosto disto” e vêm os insultos e lá se foi a glória. Mas há sempre a escapadela de ir ver quem faz anos, de entre as centenas de amigos e dar muitos parabéns a quem não conhecemos de lado nenhum ou, se conhecemos, nem nos lembraríamos, não fora o aviso dos aniversários do dia
Depois vêm as lamentações do que correu mal ou a euforia do que correu bem. E aqui entram os tais “segredos” que outrora estavam bem guardados no tal diário do cadeado.
Agora já não há nada a esconder e também não há o mínimo interesse nisso. Agora queremos que o mundo saiba que afinal já não se está numa relação e que fomos comemorar com pataniscas ao jantar, com a inevitável fotografia do repasto.
Assistem-se aos treinadores de bancada e não é só de futebol que falo. Há especialistas em todos os assuntos. Fazem-se revoluções virtuais, incitam-se as massas, trocam-se insultos da esquerda à direita, criam-se grupos de banalidades e outros de utilidades e assim se vão preenchendo momentos de solidão.

2 thoughts on “Do cadeado e da sua morte”

  1. MT bom!!! Uma viagem ao passado no presente que foi aqui agora ler-te. Bem-haja.
    Abraço desencadeado pela escrita~

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