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Psicóloga

Da escuridão e do que ela encerra

Saiu de casa envolta na escuridão da rua. As luzes tardavam a iluminar a cidade naquela tarde fria de fim de Outono. Eram 6 da tarde e já tão escuro. Ansiava pela Primavera e pela sua cor morna.

Não sabia o que a levava a sair de casa sozinha, sem encontros marcados, mas saía sempre. Talvez porque as paredes do quarto onde morava se estreitavam ao cair do dia. Um dia vão esmagar-me, estas paredes. E saía. Saía sempre àquela hora, quando também os dias ficavam mais estreitos.
Nunca nada era muito diferente naqueles passeios, mas aproveitava-os para dar voltas aos pensamentos.
Essa tarde ia ser diferente. Mais do que apenas passear, apeteceu-lhe oferecer-se um jantar num restaurante e havia de ser num daqueles caros, com vista para o rio, onde os empregados vêm buscar os clientes à porta e os tratam por Dr. Isto, Engº aquilo. Havia de ser num desses. Naquela tarde cedeu ao impulso consumista e mimou-se. Sozinha, mas era um mimo que lhe apetecia, naquela tarde.
Pediu uma mesa à janela para não perder a parte melhor da refeição. A vista sobre a cidade e o rio. Ali podia perder-se nos pensamentos e deixar para trás as paredes do quarto.
Pediu vinho tinto. Só bebia vinho tinto, mas hoje queira um especial. O empregado trouxe-lhe um Dão Reserva e, quase com uma vénia, deitou-lhe uma pequena porção para que degustasse. E esperou, como manda a regra, de garrafa em punho com o rótulo virado para ela, enquanto esperava pelo veredicto. Está muito bem, obrigada, pode servir.
Acendeu um cigarro e sentiu-se importante. Talvez a pessoa mais importante que ali estava, naquela noite. Num relance olhou as pessoas à sua volta. Nos seus passeios diários mal olhava com quem se cruzava, mas ali sentiu curiosidade em observar como se comportavam. A paisagem podia esperar.
À sua frente, uma mesa com um casal jovem. Olhavam-se como se fosse a primeira vez que estavam juntos. Provavelmente era… tímidos, mas cúmplices e apaixonados. Assim parecia.
Lembrou-se da primeira vez que vivera algo semelhante. Tímida, cúmplice e apaixonada. Passavam já largos anos.
Num impulso levantou-se e acercou-se do tal casal. A sua expressão era neutra, sem qualquer tipo de emoção aparente.
Estão apaixonados? O casal olhou-a, estranhamente sem surpresa, e responderam que sim. Estamos, muito.
Então saiam daqui. Vão-se embora. É tudo mentira. O que estão a comer, a paisagem que estão a ver, os olhares que trocam, é tudo ilusão, tudo falso.
A mulher perguntou-lhe, É por isso que está aqui sozinha?
E que outro motivo haveria? Claro que sim!
Voltou à sua mesa, acendeu outro cigarro. O casal desaparecera, como se nunca tivesse estado ali. Pediu a conta e deixou a refeição intacta. O vinho, esse bebeu-o até ao fim da paisagem.

Chegou a casa, depois de bebida toda a paisagem. As paredes do quarto já não estavam tão estreitas quanto as havia deixado, mas ainda havia algo perturbador.
Pensou no Dão Reserva que sorvera até ao fim, pensou na tal paisagem, pensou no casal que, eventualmente, nunca lá tinha estado, naquele restaurante. Pensou. Apenas.
O gato miava como que a reclamar tanto tempo de ausência, mas nada que meia dúzia de afagos e reforço de ração não colmatassem.
Pensou nos livros que tinha por ler à cabeceira. E eram tantos. Tantos que deixara acumular no vazio dos dias… era altura de os resgatar, um a um.
Olhou para cem anos de solidão, mas não era ainda o dia. Solidão era o que já sentia há muito. Solidão de pessoas, solidão de palavras, solidão de mar e de amar. Não era tempo. Não ainda.
Pensou em amor em tempos de cólera. Também não era altura de se rever.
Em baixo da pilha de livros, uma pontinha sem nome chamou-lhe a atenção. Talvez possa ser esse, talvez…
O Saramago, o José, estava ali, à espera, num ensaio cego a querer ser relido. Entre o filme e o livro e vice-versa, parecia-lhe que a chamava de novo. Talvez fosse esse. Outra vez esse.
O Dão ainda lhe corria nas veias e a paisagem, essa, ficaria sempre acompanhada do tal casal que exalava mentira por todos os poros.
Talvez fosse apenas dormir com o gato enroscado no sovaco, como de costume.

Agastavam-na certos amanheceres sem sol que, invariavelmente, auguravam dias de se perder em memórias inúteis. Nesses dias gostava de escrever. As palavras iam saindo em jorros de tinta, rápidas, muitas vezes sem nexo, misturando as mais variadas emoções. Naquele dia não seriam suficientes para o desabafo que precisava.
Resolveu sair, guiada pelo instinto que já sabia de cor os passos que a haviam de levar à esplanada do costume. O corpo pedia cafeína, como sempre em todas as manhãs. Mesmo que não houvesse sol, o café havia de aquecê-la e animar-lhe o resto do dia.
Passou os olhos pelo jornal e num virar de página pareceu-lhe ver um rosto familiar. Relevou, que afinal ia ali todos os dias e rostos familiares eram quase todos. No entanto, e noutro voltar de página, aquela figura tornou a chamar-lhe a atenção. Não era ali habitual e isso fê-la tornar o olhar mais atento. Sim, era ele, o homem do casal do restaurante. Afinal tinha estado lá. Não era apenas a sua imaginação. Era ele.
Então pensou nas palavras que lhes tinha dirigido, naquela noite, e sentiu-se corar. Não de vergonha mas de espanto. Tinha-lhes dito coisas horríveis e eles pareciam tão apaixonados, naquela noite. Como tinha sido capaz de ter dito aquilo? Mergulhou a cabeça no jornal e desejou ser invisível, com a promessa de que não tornaria a beber vinho do Dão. Só podia ter sido do vinho. Dizem que certas desinibições são causadas por certos teores de álcool… deve ter sido isso, que ela não era dada a certo tipo de abordagens, muito menos a desconhecidos. Agora sim, começava a sentir uma ponta de vergonha e enfiou ainda mais a cabeça no jornal.
Foi então que sentiu alguém aproximar-se e ouviu, num relance, dizerem-lhe quase ao ouvido, – Afinal tinha razão. Era tudo mentira.
Lentamente, levantou os olhos do jornal e olhou para ele, tentando o seu ar mais descomprometido.
– Desculpe?
– Sim, naquele restaurante, não se lembra?
Pensou se haveria de lhe dizer que sim, ou se disfarçaria com um típico «deve estar a fazer confusão, não era eu». Mas também isso ia ser mentira e enfrentou-o olhos nos olhos.
– Sim, lembro-me bem. Lamento que assim fosse.
– Não lamente, estou-lhe grato. Não imagina o quão grato lhe estou. Só me apercebi da mentira quando a vi ir-se embora e dei por mim sozinho, com uma taça de vinho na mão, a olhar para a paisagem. Era Dão Reserva, a propósito.
Pelo menos sabe escolher o vinho, pensou ela enquanto o via afastar-se, sem mais conversa.

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Do cadeado e da sua morte

Superar, ultrapassar os limites, ser forte, ser mais forte, sorrir, abraçar, amar, amar-se. Estes são os slogans que encontramos ao virar de uma qualquer esquina virtual, no percurso da nossa vida.
É curioso como é fácil banalizar a força interior que cada pessoa possa ter, como se de uma qualquer receita se tratasse. Este é o poder das redes sociais, aquilo que eu chamo o muro das lamentações do século XXI. Um autêntico prêt-a-porter de emoções.
O passar de páginas inteiras com comentários tipo anúncio, do género «se eu não gostar de mim, quem gostará?» ou, «só sabes a força que tens quando mais nada te restar senão ter força». Podia ficar por aqui com um sem número de exemplos semelhantes, mas a redundância não é a minha figura de estilo favorita.
Pergunto-me diversas vezes, o que procuram as pessoas numa rede social? O que as move na decisão de criar uma página pessoal no meio tão inóspito que é a Internet? E digo inóspito porque é minha convicção que o é de facto. A Internet não é o nosso bairro, a nossa escola, a nossa família, os nossos amigos. A Internet é o mundo inteiro, a praça pública da aldeia global, onde todos se podem permitir dizer tudo o que lhes vai na alma, onde todos podem assumir uma qualquer personagem, onde todos podem saber tudo o que cada um quiser mostrar, literalmente, onde todos podem criticar, ser criticados, sem apelo nem agravo, onde espreitam perigos de toda a espécie para os mais incautos. Querem um meio mais inóspito que este? Mas atenção, mea culpa, que eu também faço parte do grupo e gosto!
Voltando à questão, o que as move, o que faz com que exponham a sua vida, por vezes ao mínimo detalhe, num sítio assim?
Lembro-me do tempo sem telemóveis, sem Internet, onde tudo acontecia como e onde tinha de acontecer, sem que o mundo inteiro soubesse. As acções ficavam no seio de quem as praticava.
Nesse tempo corria-se menos, falava-se mais, lia-se mais, escrevia-se mais. E este é o ponto, para mim, fulcral de toda esta conversa. Escrevia-se mais. Escreviam-se cartas, de amor e das outras, escreviam-se postais ilustrados das férias para enviar aos amigos, à família. Também se sentia a solidão, também se escolhia um amigo para desabafar as mágoas, mas, sobretudo, existia uma coisa chamada diário que servia de repositório de emoções, ao mesmo tempo que se descreviam os acontecimentos que as desencadeavam, ou vice-versa.
Eu nunca tive nenhum, embora sempre tivesse esse desejo. Lembro-me de os ver nas montras das papelarias, lindos, maiores ou menores, mas sempre com um cadeado e ficava fascinada. Para mim esse era o grande mistério dos diários: o cadeado! – Porque têm um cadeado, Pai? – Porque ali se escrevem coisas pessoais, coisas que só dizem respeito à pessoa que escreveu e que não se quer que mais ninguém leia.
Naquela altura, a resposta do meu Pai ainda aguçou mais a minha fantasia. Eu tinha de ter um diário. A vida não era fácil e as hipóteses de ter um, daqueles com cadeado, era remota, por isso improvisei. De um caderno escolar novinho em folha, fiz aquele que seria o meu 1º diário. Colori a capa, colei uns bonecos e acrescentei uma fita de ráfia que atava sempre, cuidadosamente, após cada acontecimento que ali descrevia. Era o meu cadeado e eu acreditava que era tão inviolável como os verdadeiros.
Hoje, sabemos, esse mistério fascinante morreu. Acabaram-se os segredos, tão nossos, acabaram-se os cadeados, improvisados ou não.
Mas aquilo que o meu Pai me disse naquela altura «Porque ali se escrevem coisas pessoais, coisas que só dizem respeito à pessoa que escreveu e que não quer que mais ninguém leia.», nunca me saiu da cabeça. Continuo a tentar perceber porque tudo isso acabou. E vou descobrindo, aos poucos.
Sem querer cair em lugares comuns e psicologia de cordel, acabou do mesmo modo em que as crianças deixaram de brincar na rua com os amigos; já não jogam aos «polícias e ladrões» nem ao berlinde, nem ao peão. Deixaram de esperar que as mães os chamassem para ir lanchar, que depois sempre podiam voltar à brincadeira. Passaram a “barricar-se” nos respectivos quartos a jogar consola e a comer as sandes ao mesmo tempo, atabalhoadamente, para não perderem “vidas” nos jogos. Deixaram de brincar com os amigos de sempre, deixaram de socializar, de dar o 1º beijo às escondidas atrás de um arbusto qualquer.
Começaram a crescer à frente do monitor de um computador, deixaram as consolas e começaram a namorar à distância, que o 1º beijo, esse chegaria de uma qualquer maneira bizarra, sem aquela atracção de antes, mas com a mesma curiosidade do proibido, tantas vezes decepcionante.
Assim têm vindo a crescer várias gerações, que hoje são pais e adoptaram precisamente o mesmo estilo de “convívio”. É o progresso, dizem, fazer o quê? Adapta-te ou morre…
E foram-se perdendo valores, como quem não quer a coisa. Perderam-se os amigos reais e ganharam-se milhares de “amigos” virtuais. Agora contam-se os amigos das redes sociais, quantos mais melhor (?) e diz-se à boca cheia que se é amigo do Brad
Pitt ou de uma qualquer outra estrela. E vai-se alimentando assim a auto-estima.
E depois, quando finalmente se desliga o computador, vai-se dormir a pensar em que frase bombástica se há-de iniciar a nova sessão. Ler? Só se for para retirar alguma ideia passível de aprovação no próximo post.
Mas a próxima sessão tem imensos desafios e a adrenalina sobe quando se vão vendo as repercussões que teve o tal post. Afinal não agradou a todos! Agora demos largas à imaginação, ou falta dela, para defender a camisola. E vêm os “gosto disto” e vêm os insultos e lá se foi a glória. Mas há sempre a escapadela de ir ver quem faz anos, de entre as centenas de amigos e dar muitos parabéns a quem não conhecemos de lado nenhum ou, se conhecemos, nem nos lembraríamos, não fora o aviso dos aniversários do dia
Depois vêm as lamentações do que correu mal ou a euforia do que correu bem. E aqui entram os tais “segredos” que outrora estavam bem guardados no tal diário do cadeado.
Agora já não há nada a esconder e também não há o mínimo interesse nisso. Agora queremos que o mundo saiba que afinal já não se está numa relação e que fomos comemorar com pataniscas ao jantar, com a inevitável fotografia do repasto.
Assistem-se aos treinadores de bancada e não é só de futebol que falo. Há especialistas em todos os assuntos. Fazem-se revoluções virtuais, incitam-se as massas, trocam-se insultos da esquerda à direita, criam-se grupos de banalidades e outros de utilidades e assim se vão preenchendo momentos de solidão.